Thursday, September 06, 2007

Evolução?


... Dessa vez eu estava aprisionada, e ela estava questionando sua liberdade.

Assim que coloquei meus pés naqueles degraus, percebi que estava embarcando rumo ao meu tão almejado exílio.
Como de costume, lutei contra tudo e todos por um espaço ao lado da janela.
Elas me dão a sensação de poder voar quando fecho meus olhos.

(...)

Lembro-me da primeira vez que a vi. Era uma manhã em que a chuva caía impiedosamente por sobre sua pele clara. Mesmo sem a conhecer face a face, quis protege-la. Desejei gritar para ela vir para perto de mim, para poder se abrigar sob o mesmo alpendre do casebre que havia encontrado. Mas um sentimento infundado de medo preencheu todo o espaço ocupado antes pela solidariedade.
Inexplicavelmente, a deixei do lado de fora.

Por anos esse sentimento de culpa perseguiu-me incansavelmente. Não sabia ao certo se aquela chuva havia levado aqueles olhos claros que me encararam enquanto, eu dentro do casebre, secava meus cabelos.

Por ironia do destino, em uma tarde de outono, entre a multidão, pude reconhecer aqueles olhos. O brilho que irradiava deles era o mesmo, porém a intensidade era tremendamente maior. Fato que me deixou receosa.

Uma barreira imaginária novamente impediu-me de poder me aproximar dela. Mas mesmo de longe pude enxergar seus olhos fixando os meus. Olhos de agradecimento. Olhos seguros, expressivos.
Naquela tarde, fui liberta daquele sentimento.

(...)

Mais dois anos se passaram. E esses ainda estão cravados de forma acentuada.

(...)


Embora a prisioneira fosse eu, de alguma forma, sempre soube que ela desejara com todas as suas forçar ser reclusa como eu. Seguramente afirmo que ela abdicaria imediatamente de sua falsa liberdade para viver aprisionada como fui predestinada a ser.

(...)

Sempre conjeturei que ela precisasse de ajuda, mas somente após sua morte pude ter certeza que ela realmente desejou ser salva durante toda sua vida.

Talvez quisesse apenas ser liberta de sua própria vida.

Seu assassino foi sistematicamente frio. Com as mãos já ensangüentadas, conseqüência de outro homicídio, ele cautelosamente alçou seus olhos e encarou os dela. Posso imaginar o horror circulando por entre suas veias. Observou-a por alguns instantes e sorriu enquanto pronunciou as últimas palavras que ela ouviu em sua precoce vida;

“Hoje é o seu dia de sorte”.

Vergonhosamente cada centímetro de seu corpo foi dilacerado, exposto e leiloado.


A impressão que tenho é que desde o início de sua vida ela pressentira sua morte. Talvez por isso tenha vivido tão intensamente. Talvez sempre tenha suspeitado que um dia seria morta por aquele que obstinadamente a alimentou. Talvez tenha sido essa a razão por não tê-lo culpado enquanto ele lentamente trinchava seu corpo.

Mas eu o culpo, sinto asco, vergonha de ser da mesma espécie que ele.

Hoje, quando sento-me na janela e começo a voar, lembro-me daqueles olhos claros.
Penso que o mundo poderia ser menos cruel, menos desigual, quem sabe até mais fraternal. Mas a retórica lateja em minha mente, e o questionamento é inevitável; se existissem somente pessoas boas, a encargo de quem ficaria toda a sujeira e desumanidade?
Aos animais, quem sabe...