Sunday, March 18, 2007

Incompatibilidades de genes.





-- Carol, arrume-se! Vamos sair para comprar uma roupinha bem linda para você.

Lembro que estava sentada em frente a minha sapateira anexa a meu guarda-roupa embutido em uma parede cor de gelo. Com questionamentos relacionados à arquitetura, olhava invariavelmente para dentro da sapateira, que havia sido desocupada (pacificamente e com total apoio de Dona Cecília) para dar lugar à nova casa de minhas Barbies. A sapateira possuía duas prateleiras, logo a luxuosa mansão de minhas bonecas continha dois andares, para a maior comodidade e mobilidade de minhas fieis amigas.

Sem titubear e exercendo uma rapidez incrível no quesito “vestir-se imediatamente” troquei minha roupinha de ficar em casa (lê-se: aquelas que serviriam como pano de chão, mas por apego ou por não ter outra para substituí-las, deu-se início a uma nova classe de roupa, as “de ficar em casa”).

As “roupas de ficar em casa” eram mantidas sob o olhar organizacional da matriarca regente Dona Cecília e sob os cuidados de sua leal “escudeira”, Rosa.
Algumas regras foram estabelecidas para o perfeito funcionamento da classe têxtil denominada “roupa de ficar em casa”:

Parágrafo Primeiro: Roupas de “ficar em casa”, jamais devem abandonar seus lares. Ou seja, NUNCA sair de casa trajando roupas de “ficar em casa”.
Parágrafo Segundo: Toda e qualquer “roupa de ficar em casa”, deve e será substituída quando enfim chegar o dia de sua aposentadoria (lê-se lixo).
Parágrafo Terceiro: A seleção para uma roupa se tornar “roupa de ficar em casa” será rigorosa, uma vez que “roupas boas” que sequer modelam o corpo sem apertar, terão de ser repassadas para primas mais novas (lê-se Larissa ou Rosa e Cia).
Parágrafo Quarto: Em hipótese alguma, será admissível lamentação ou qualquer manifestação de prato perante o declínio de categoria de uma peça de roupa.
Parágrafo Quinto: Ao atingir a categoria “roupa de ficar em casa” qualquer amostra de desprezo ou descaso para com a roupa em questão será severamente reprimida, repreendida e corrigida.
Parágrafo Sexto: “Roupa de ficar em casa” e “roupa de sair”, nunca devem ser comparadas, uma vez que ambas possuem valores igualmente significativos.
Parágrafo Último: O não cumprimento das regras estabelecidas acarretará em instantâneas argumentações e suspensão de regalias ao final do mês.

Entrei no carro, vestida adequadamente com uma de minhas “roupas de sair”, cabelo (rebelde) preso, sorriso inegavelmente estampado em meu semblante.
Curioso como o verbo comprar traz consigo um turbilhão de sentimentos, tantos que podem levar uma criança de 10 anos ao ápice de seus anseios e em muita das vezes levam a súbitos lapsos de memória.

Chegamos à loja, a mais cara da cidade, que vendia apenas roupas de marca (Lilíca Ripilica, Pakalolo) enfim, a loja sensação do momento, cuja filha da dona estudava na mesma classe que a minha, e que durante inesgotáveis dias de diversão e felicidade desempenhou o papel de minha melhor amiga. Nossa amizade durou menos de 2 anos, mas deixou legados memoráveis como no dia em que recitamos juntas, aos 7 anos de idade, versos sobre a independência do Brasil, sendo esse nosso debut perante a sociedade elitizada da pequena cidade em que vivíamos.

Exausta por ter experimentado praticamente todo o estoque da loja e perdido a tarde inteira trocando de blusas e calças, tentando fazer com que uma calça laranja lima combinasse com uma blusa verde limão, acabamos por levar algumas peças de roupas.
Entre elas, algumas chamativas, outras nem tanto, umas discretas, outras que realmente nasceram para brilhar.

Porém, uma das peças adquiridas naquela tarde exercia um poder sobre o abstrato olhar de minha mãe que singularmente se manifestava naquela tarde. Era uma blusa vermelha cuja estampa esboçava uma menina inquestionavelmente feliz.

-- Mãe, posso usar essa blusa hoje de noite para ir à casa da Vera?
-- Não filha, você só vai usar essa blusa em uma ocasião especial.

(...)

E assim a ansiedade tomou conta de cada interminável segundo que vivi durante os dias que precederam o fatídico dia. A blusa era realmente linda, mas o que me corroeu aos poucos, não foi o mistério que envolvia aquela bela blusa, mas sim perceber a capacidade de hipnotismo que aquele ingênuo pedaço de pano exercia sobre minha mãe. Por que de tanta apreensão perante ela? Qual seria o real significado daquela blusa?

Padecendo naqueles dias de angústia, desejei mais do que nunca ter uma máquina do tempo, que me levasse direto ao dia em que finalmente poderia usá-la. Confesso que cobicei usar a tal blusa em uma viagem, quem sabe para a Disney.

Minha espera durou o tempo suficiente para que eu pudesse imortalizar não somente a blusa vermelha, mas também a bermuda e a boina jeans, que usei naquela manhã ensolarada que em questão de minutos, tornou-se tão amargamente surpreendente e inesquecível.